sábado, 22 de dezembro de 2012

A onda

De dentro de ti
a onda que enrola
e agarra
e puxa
para dentro de ti

De dentro de mim
a vontade de naufragar


* escrito para o quadro da pintora Lisa Schneider e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A mensagem

Bebi o copo de água
mas nem assim foram mais fáceis
de engolir 
as palavras

Olhei as flores garridas
e nem assim deixaram de ser
a preto e branco

Às vezes nem toda a vontade do mundo
pode transformar a mensagem
em amor


 * escrito para o quadro da pintora australiana Lori Pensini e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Pescar estrelas

A noite há-de voltar
e aprendi no livro que me deste
que as estrelas se pescam 
quando me atrevo a sonhar

abro no peito o buraco certo
e mergulho no breu
com olhos de luz


 * escrito para o quadro do pintor Andrej Mashkovtsev e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

O exemplo

Imitas-me 
e nem sabes bem porquê

Um dia saberás
e nunca mais largarás os livros


 * escrito para o quadro do pintor chinês Sun Weimin e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Nesga

Quero acreditar que há uma nesga de sol que vai ficar a meu lado
uma nesga fiel como cão
capaz de iluminar a página mais negra dos meus dias

Quero acreditar na primavera mesmo no meio do inverno



* escrito para o quadro do pintor Louis Guarnaccia e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.  

No museu

Quisera eu ser
a mulher no quadro

Talvez o seu livro seja melhor
do que esta noveleta
que me ajuda a matar as horas
enquanto ganho a vida 

 * escrito para o quadro do artista artista norte-americana Linda Apple e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

Na banheira

Não há poesia maior do que um domingo de manhã, 
na banheira,
livro na mão, página após página, suspensa no tempo.

Até que a água arrefece
e a vida continua, pés nus sobre o tapete felpudo.


 * escrito para o quadro do artista chinês Chen Bolan e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Tatuagem

Posso ler no meu corpo
como leio neste livro
as marcas que deixaste
quando partiste

Viraste a página
e eu fiquei a tentar editar
o que resta de nós 


* escrito para o quadro do pintor italiano Lorenzo Mattotti 
e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

À espera do sol

O mundo passa-me ao lado
mas não há pressa no livro que leio


nem comboios que se cruzam
nas entranhas da terra


nem mulheres de perna traçada
como quem espera o futuro
sem confiar que ele chegue 

Estou suspenso de mim
e ainda não vi o sol


* escrito para o quadro do pintor holandês Gerard Boersma 
e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Ler é amor, sabias?

Quero ler para ti
baixinho
ao ouvido

quero que a minha voz
te toque o âmago 
e te enrole as entranhas

quero que nunca esqueças
o calor das minhas vogais
a ventania que fazem as consoantes
o rumorejar quando se encostam umas nas outras
e se amam

como eu te amo
quando te leio
baixinho


* escrito para o quadro do pintor arménio Yuroz e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Encontrar o amor

Tentei perceber o que estavas a ler;
nada como avistar uma capa 
para saber se quero casar contigo
ou fugir para o mais longe possível

não conheço outro modo 
de encontrar o amor 


 * escrito para o quadro do americano Charles Dana Gibson (1867-1944) e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

A lição

Na desarrumação dos dias
encontro-me e desencontro-me

há um livro a meio
e uma cadeira caída
e uma lição para aprender
e ensinar


* escrito para o quadro de Linda Olafsdottir, ilustradora da Islândia, e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

Suspensa

Suspensa daquela linha
que não consigo parar 
de ler
e reler
e voltar a ler

Aquela linha 
além da qual não consigo passar

Suspensa daquela meia dúzia
de palavras
que custo a entender
- ou finjo
quando na verdade
são tudo o que sei


* escrito para o quadro da pintora dinamarquesa Winnie Meisler e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Cordel

Leio por desfastio 
enquanto te espero
- em vão -
no velho bar 

Os bancos vermelhos
já não cheiram à nossa ânsia
e tu não chegas

Viro a página
ouço uma voz em fundo
que desejo a tua

e nem uma palavra fala de ti
neste romance de cordel


* escrito para o quadro da artista Delia Brown, pintora de Los Angeles, EUA, e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Sonhos

Deitas-te a meus pés
e as páginas passam a ser almofadas
recheadas de sonhos

e frutos
e nuvens
e acreditares


e palavras como as que nunca me disseste 


 * escrito para o quadro do artista Alexander Demidov, da Bielorússia, e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

À distância

Ergui o rosto para ti
beijaste-me a testa

tal como vinha no livro
das promessas de amor 
e de todos os sonhos


 * escrito para o quadro do artista Silas Stoddard e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Flores amarelas

O sono vem e não vem
e o sol vai nascendo na janela

Nas entrelinhas do livro que tento ler

estão as flores amarelas que me trouxeste



 * escrito para o quadro do artista chinês Chen Bolan e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

Detalhes

Às vezes não passa de um detalhe
uma vírgula no teu olhar
uma reticência na forma
como as tuas mãos alcançam a minha

Às vezes não passa de uma gralha

uma palavra que saiu trocada
da tua boca
uma conjugação do verbo amar 
num presente mais que imperfeito

Às vezes não passa de um rabisco 
que displicente traças 
na margem do livro
que andamos a escrever

Mas tudo me diz
que eu e tu 
não pertencemos 
ao mesmo poema


 * escrito para o quadro da alemã Annette Schmucker e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

Contemplação

Todos os meus dias 
são feitos da contemplação 
teimosa
do mundo

Nuns vejo a beleza 
do recorte perfeito
imperfeito 
do mármore

Noutros a imperfeição 
perfeita
de nós


 * escrito para o quadro da australiana Catherine Abel e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

No topo

Na procura de uma montanha alta
do topo da qual ver o mundo
encontrei-te.
Fechado, sem conhecer o que seja
o ar rarefeito da altitude

E, no entanto, levantando uma voz
potente
que alcança os confins da terra


* escrito para o quadro do ilustrador espanhol Jose M Capitán del Rio e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Ao almoço

Noutro tempo
falavas de amor e bondade
e fazia sentido

Depois li a tua alma
como um livro
e encontrei gralhas
e incongruências

Arrumei-te na biblioteca
da minha memória


Talvez o pó te transforme 
na essência bonita de ti


* escrito para o quadro do americano Joseph C. Leyendecker e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Sonhando

Deito a cabeça no colo 
das tuas palavras,
sonho as linhas com que coses o meu âmago 
delicadas e insanas

acordarei um dia
talvez em Setembro 
e saberei de cor a tua alma


 * escrito para o quadro do americano John Tarahteeff e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Na praia

Foi sempre assim

Tu virado para os pés,
eu para a cabeça.

E a-mar ali tão perto


* escrito para o quadro do argentino Alfredo Antognini e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

À luz da vela

Lembras-te de quando éramos miúdos?
Ainda não havia electricidade lá no monte 
e a avó insistia para não lermos muito tempo
que fazia mal aos olhos.

Hoje uso óculos e cada vez vejo menos
mas já ninguém me tira os milhares de livros
que me passaram pela vista
sim, mesmo sob a luz trémula da vela
estiraçados no chão de cimento fresco 
da sala da salgadeira


 * escrito para o quadro do ilustrador madrileno Kike de la Rubia e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Três pisos

Faz-se silêncio na biblioteca

ecoa apenas a voz interior de quem lê
poemas recheados
de estranhas metáforas

e um ocasional coração que bate mais forte
rascunhando uma carta de amor

 * escrito para o quadro da austríaca Anna-Maria Jung e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Navegando

Encho o barco de livros e zarpo
que já nada me prende ao cais

nem o teu olhar
nem a voz dos pinhais
nas noites de vento

nem a lentidão das horas 
à sombra da figueira velha

Esperam-me o alto mar
e aventuras de piratas e medusas
sereias mais ou menos obtusas

navegar 

 * escrito para o quadro do pintor alemão Quint Buchholz e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

De bicla

A rua
A cidade
O mundo
tudo faz silêncio
para ouvir melhor a voz com que escreves

a voz com que me falas do teu mundo
dos teus silêncios
da tua cidade
da tua rua

enfim, de mim
que livros são espelhos
também de quem os lê 


* escrito para o quadro da artista americana Karen Cooper e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Até à China

Amor, ias buscar-me à China? 
Ia buscar-te ao fim do mundo. 
Amor, ias buscar-me tão longe?
Tão longe quanto for preciso.
Amor, ias buscar-me dentro de um livro?
 
Desculpa, não sei ler.

 * escrito para o quadro do artista chinês Liu Ye e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Nuvens de tinta-da-china

Nas nuvens de tinta-da-china escondo as palavras
que ainda não sei como usar
retalhos do meu corpo e do meu cheiro
e do sabor das minhas entranhas
destroços dos meus amores e desamores
pequenas pérolas das ostras felizes de dias de mar
grãos de areia na engrenagem dos céus
de algodão sujo


 * escrito para o quadro do pintor e cenógrafo espanhol José Luis Navarro e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Metamorfose

O estômago permanece sereno
mas as pernas desfazem-se em borboletas
quando leio as linhas que escreveste
noutro tempo

a poesia é imortal, amor
mesmo que tu não sejas

 * escrito para o quadro do vietnamita Duy Huynh e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Selvagem

Somos todos animais selvagens
na leitura 
que fazemos 
dos outros

Devoramos 
os seus corações em sangue 
roemos os seus 
ossos exangues da luta
cuspimos
o que resta das suas 
carcaças

E nada trava o apetite 

 * escrito para o quadro da ilustradora  italiana Roberta Angaramo e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Memórias

Mergulho em ti
como mergulhas na minha memória
sem pedir licença

faço-me extensão
do que somos juntos
serena sereia amando pirata
enredo de livro de cordel
final obviamente feliz

bendita a literatura
que nos mantém juntos
quando a morte ceifou
a verdade

 * escrito para o quadro da pintora francesa Francine Van Hove e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

sábado, 29 de setembro de 2012

No olhar

Em algum dia fomos assim
criança de livro na mão
sonhos por sonhar
quanto mais viver

e todos os pássaros no olhar


 * escrito para o quadro do pintor espanhol Jose Enrique Pinaglia e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Na relva

Deixa-me morrer assim, estiraçada na relva, descalça, olhos postos nas nuvens. 
Deixa-me morrer assim, um livro aberto numa página bonita
- espero que não se levante o vento e a mude,
baralhando a minha última vontade
e testamento final.

Deixa-me morrer assim, a achar que vão recordar-me
e sentir vagamente a minha falta quando,
em dias assim quentes e húmidos,
avistarem alguém estiraçada na relva, descalça, olhos postos nas nuvens
e um livro aberto. 

Quem sabe numa página bonita

 * escrito para o quadro do pintor sérvio Vladimir Dunjic e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Um abraço

Importa o que se lê?
Importa se as letras que se juntam 
falam de algo que morreu
de passados que passaram
de futuros que não se sabe se teremos?

Importa se a sequência em que se completam 
ilustram estados de alma 
paixões rasgadas
ou meros reflexos de luz numa gota de água 
que se equilibra perclitantemente
numa pétala?

Importa se as palavras se aninham
umas nas outras
para simular o teu abraço? 

* escrito para o quadro da irlandesa Daire Lynch e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Detalhes

Às vezes não passa de um detalhe
uma vírgula no teu olhar
uma reticência na forma
como as tuas mãos alcançam a minha

Às vezes não passa de uma gralha

uma palavra que saiu trocada
da tua boca
uma conjugação do verbo amar 
num presente mais que imperfeito

Às vezes não passa de um rabisco 
que displicente traças 
na margem do livro
que andamos a escrever

Mas tudo me diz
que eu e tu 
não pertencemos 
ao mesmo poema


 * escrito para o quadro da alemã Annette Schmucker e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Peço escusa

 
Peço escusa, sr. dr. juiz,
Peço escusa à dor
que a conheço de outros carnavais 
Peço escusa ao abismo negro
das lágrimas
Ao portão imenso
que delimita a minha loucura
 
Peço escusa
encarecidamente
sr dr juiz 
à negritude de alma
que sei como tolda a vida
 
Peço escusa ao sofrimento
auto infligido
Prefiro a infinita ingenuidade
de achar que todos os dias
são recomeços
e todos os dias posso fingir que sou feliz 
E todos os dias posso dar
chapadas de luva branca aos que choram
e se lamentam
e se arrastam
Como me arrasto por dentro
quando me permito
ser apenas eu
 
Peço escusa sr. dr. juiz
às chaves da minha angústia
Prefiro os muros altos que criei
e a solidão que significam
à compaixão que abomino
 

sábado, 25 de agosto de 2012

Chão da manhã



Escorregam-me os olhos pelo chão da manhã
em busca do momento da partilha que há-de vir.
Pertenço ao povo que vive na dura argamassa das juntas.


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Às escondidas


Poucos sabem que me escondo
na tua imagem

Faço dela o transporte
para as palavras
que não consigo segurar
e que temo não valerem
a tinta que nelas gastos
o papel que risco
a eito
sem conseguir suster
a ânsia
de dizer algo que sei
sem saber como sei

algo que fique

algo por que me recordem
um dia
quando já não for mais
do que cinza e espírito

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Estalo


Tira-me as palavras da alma, o poeta
atira-as de volta
como um estalo

um bofetão de realidade
envolta em poesia
duas linhas aqui
ali um pé quebrado
além a redondilha
medida velha de quem sou
e não sei dizer